https://ojs.ifch.unicamp.br/index.php/modernoscontemporaneos/article/download/4817/34
ADVERSE, Helton. Comentário a “Maquiavel e a Origem das Sociedades Políticas”: Maquiavel e o Realismo Político (2023)
ADVERSE, Helton. Arte da guerra e arte do Estado em Maquiavel (2022)
Aceitando o pressuposto de que política e guerra são domínios afins em Maquiavel, nós pretendemos neste artigo examinar a especificidade da arte da guerra em cotejamento com a arte do Estado. Se as homologias entre os dois campos são evidentes, resta investigar os pontos em que eles se diferenciam de modo decisivo. Para tanto, será preciso fazer duas coi- sas: por um lado, destacar as principais componentes da arte da guerra como conjunto de práticas; por outro lado, demonstrar que ela somente pode alcançar seus objetivos se for capaz de produzir a união entre os in- tegrantes do exército.
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Carta a Fabiana Benetti Após Defesa de sua Tese de Doutorado- Prof. Sérgio Cardoso
Cara Fabiana,
Não me contive em vir lhe trazer meus parabéns e lhe dizer, ainda uma vez, da minha satisfação de ter participado de sua banca. De um lado, por ver em você toda uma nova geração de “maquiavelianos” competentes surgindo entre nós – comprovada pela qualidade de seu trabalho e pela formação que ele mostra; de outro, certamente, pelo encontro com os amigos, com os quais sempre vou aprendendo bastante, como ocorreu na sua defesa.
Gostei muito das arguições e também dos comentários que você trouxe para cada uma delas. Questões fundamentais como a do Visentin sobre o sentido prático da reflexão política de Maquiavel (que a gente frequentemente esquece) e sua aderência aos acontecimentos, à contingência; a indeterminação do desejo popular em contínuo movimento instituinte. As oportunas perguntas da Flávia sobre a relação da cidadania militar e o conceito de povo. As excelentes considerações do Helton sobre a oposição conceito e tempo, o excesso irredutível da história em relação aos conceitos.
Quanto aos meus próprios comentários, tenho um pouco de dúvida se fui bastante claro nos dois pontos que eu quis ressaltar. Primeiro, sobre suas notas relativas à volta do par ‘matéria/forma’ nos textos de Maquiavel: o povo como ‘matéria’ apta a receber uma forma política da parte do Príncipe, o tema espinhoso da fundação. O que eu quis, na verdade, sugerir foi que talvez se devesse frisar menos uma oposição entre fundação originária e re-forma (ou mesmo re-fundação) de uma “forma comprometida” (mas não sem forma, disforme, como você diz), e mais a passagem de formas não-políticas (despóticas e ‘licenciosas’) para as formas políticas — seja no caso do principe nuovo, o caso do principado político, seja no caso das repúblicas. Enfim: há um “pré-político”, que não se confunde com uma dispersão primitiva dos homens, mas que remete ao não-político, o despotismo e a licença.
É claro que as sociedades políticas estão em contínua mudança (Lefort mostra que elas são propriamente ‘históricas’), pois opera nelas continuamente a divisão grandes/povo, que produz continuamente novas oposições, novas leis, novas instituições; porém, não é esse o caso da ‘fundação’ de uma ordem política, o “dar ao povo uma unidade política” (tese p.110). Trata-se aí da atividade própria de toda ordem política, da operação política do negativo (mesmo que essa negação já estivesse presente, de algum modo, no momento da fundação; pois, o desejo de bens e domínio já opera nesse momento, e desde sempre, entre os homens, suscitando a negação da opressão que ele enseja e que o fundador ‘catalisa’, aquela negação que dá origem às leis e sustenta o ato da fundação). Mas veja que a fundação de uma ordem política qualquer se assemelha sim a uma fundação ‘originária’: você verá em Discorsi I, 9, que Maquiavel, ao entrar nas considerações sobre a fundação, já no título, fala em “ordenar uma república nova ou reformá-la inteiramente com ordenações diferentes das antigas”, em casos de extrema corrupção, não só da cabeça, mas já do busto e dos membros (Cf. I, 17), portanto em casos de inteira corrupção e licença [ e lembremo-nos da exortação à “virtù di uno spirito italiano” no capítulo final d’ O Príncipe: foi preciso, ele diz, que a Itália “fussi più stiava che li ebrei, più serva che ‘persi, più dispersa che gli ateniesi: sanza capo, senza ordine, batuta, spogliata, lacera, corsa, e avessi sopportato d’ogni sorte ruina”
Minha segunda questão foi relativa ao seu capítulo três: “Povo como parte”, que nos remete diretamente à teoria da divisão civil e da natureza do conflito político. Aí, lembrei na defesa, você fala em ‘equilíbrio’ (Frosini) dos humores, em ‘mistura’ (Balestrieri) e, finalmente, em ‘partilha do exercício do poder’. Como sugeri naquele momento, no meu entender, a relação
grandes/povo certamente não pode ser de equilíbrio, visto que não se trata de duas pulsões ‘positivas’, diversas na sua positividade, mas de uma oposição de forças ‘contrárias’ (ou mesmo contraditórias, como tenho sustentado), sendo, portanto, resistentes a ‘misturas’ e também a qualquer ‘partilha do poder’. Mesmo quando há nas instituições republicanas partilha das magistraturas (como ocorre nas instituições estabelecidas no ‘Tumulto dos Ciompi’ entre o popolo – cidadãos inscritos na Arti, nas corporações de ofícios – e a plebe – aqueles até aí destituídos de cidadania social e política), o que se dá é a produção de espaços institucionais ordinários de disputa, de oposição, a produção de canais institucionais para o exercício político do “indépassable” conflito dos humores de ‘grandes e povo’ (a designação genérica para todas as oposições políticas).
Nas verdadeiras repúblicas, não governam nem o povo nem os grandes; governam as Leis, os universais políticos produzidos pela negação popular (pelo Universale) da opressão, particularista, dos grandes. No principado político governa, autocraticamente, um sujeito político sustentado pela ‘amizade’ do povo, sendo esse príncipe um ‘instrumento’, um canal – imaginário – de vazão do desejo negativo do povo, de sua oposição aos grandes. Enfim, repúblicas e principados políticos, são formas ‘ordinárias’ do exercício da negação popular do desejo de dominação dos grandes – o desejo que, não barrado, leva a cidade na direção do despotismo de facções ou à corrupção da Licença. Assim, as principais oposições estabelecidas por Maquiavel me parecem ser: “regimes políticos e não-políticos”, além da Licença; entre os regimes políticos, “Repúblicas e Principados”; com seus momentos de “fundação e corrupção”; e quanto à atividade política (popular), seus “modos ordinários e extraordinários” (institucionais ou extra institucionais; ambos, aliás, marcados por sentimentos hostis entre os opositores e, mesmo no primeiro caso — o dos modos ordinários –, uma certa violência; pois, nunca há ‘concórdia’).
Cara Fabiana, volto a essas questões por ter ficado com a impressão de não ter podido ser suficientemente claro em alguns de meus comentários de passagens de seu trabalho, que apreciei muito. Assim, decidi aproveitar essa mensagem de parabéns para esticar nosso diálogo.
Parabéns, portanto, por sua tese, colega doutora.
Sérgio
RESUMOS do Encontro Virtual (17 e 18 de dezembro de 2020) do GT Ética e Política na Filosofia do Renascimento
GT Ética e Política na Filosofia do Renascimento
Encontro Virtual 17 e 18 de dezembro de 2020
RESUMOS
Os dois principais pontos de transição da compreensão de Maquiavel sobre o povo
João Gabriel da Silva Pinto Filho (UFMG)
Amparados pela constatação de que a reflexão política maquiaveliana apresenta momentos distintos relacionados diretamente com a vida do autor, o objetivo de nossa comunicação será verificar como se dá a transformação da concepção de Maquiavel sobre a figura do povo nos dois pontos de transição existentes entre as três fases em que podem ser divididos seus escritos. Para tanto, realizaremos metodologicamente o cotejamento entre a análise detida de dois textos, La lettera a uma gentildonna (1512) e o Discursus florentinarum rerum post mortem iunioris Laurentii Medices (1521), e trechos de escritos anteriores e posteriores. Defenderemos a tese que estes textos se configuram como os dois principais pontos de transição da compreensão de Maquiavel sobre o povo por apresentarem elementos remanescentes dos momentos antecedentes concomitantes a novidades dos momentos subsequentes.
Os conceitos de populo e grandi pensados a partir da sociedade florentina do final do século XIII
Fabiana de Jesus Benetti (UNIOESTE)
No pensamento político de Maquiavel, os conceitos de grandes (grandi) e povo (populo) tiveram notoriedade na teoria sobre o conflito político, elaborada pelo florentino e apresentada em suas três obras maiores: O Príncipe, os Discursos e a História de Florença. Grandi e populo são ali apresentados como as partes que compõe toda a cidade e que se caracterizam por desejos antagônicos: enquanto os grandi desejam dominar, o populo deseja não ser dominado. Para melhor compreender o que caracteriza cada um destes atores políticos, pensamos ser importante compreender a dinâmica de suas lutas ao longo da história, tendo isto em vista, a nossa proposta é a de voltar o olhar para a sociedade florentina do final do século XIII com o intuito de identificar quem ali é dito grandi e quem é dito populo e no que consiste a relação entre eles.
A formação cívica do cidadão em Maquiavel
João Aparecido Gonçalves Pereira (UFG)
No grupo dos diversos pensadores da filosofia política que abordaram a formação cívica do cidadão podemos também inserir Nicolau Maquiavel. Apesar dele não ter tratado deste assunto de forma direta e/ou sistemática, ele formulou algumas ideias que são muito relevantes para pensar a possibilidade e a necessidade de formar os indivíduos para a cidadania e a convivência entre eles. Isto é, a maneira como secretário florentino abordou a educação, as boas leis, os bons costumes, a religião e a natureza humana, nos permite perceber que ele construiu uma boa base teórica para pensar o quanto é necessário e como é possível formar os homens civicamente para
a vida junto aos outros. Dessa forma essa comunicação visa discorrer sobre os elementos teóricos que existem no pensamento do florentino que ensejam pensar numa formação cívica do cidadão partindo da educação, das boas leis, dos bons costumes e da religião. O desenvolvimento de tal reflexão, é balizado pelas seguintes questões: Por quê para Maquiavel é necessário, e, possível formar os homens civicamente? Como esta formação cívica acontece?
A presença do Direito em Belfagor
Jaqueline Fátima Roman (IFPR)
Pode-se afirmar que a presença de elementos relacionados ao direito e à linguagem jurídica em Belfagor se dá em vários momentos da obra. Trata-se de uma fábula pouco extensa em volume de páginas, mas repleta de elementos jurídicos. A presença do direito fica evidente desde o início, pela própria narrativa adotada por Maquiavel que utiliza a estrutura jurídica processual para apresentar sua obra. Somente pela breve transcrição do enredo é possível perceber uma relação entre os personagens muito parecida com a relação jurídica que se dá em um processo, com uma parte que acusa; outra que sofre a acusação; e outra que julga. Essa estrutura processual é muito facilmente percebida em Belfagor, tendo em vista que de um lado estão os homens mandados para o inferno, que são ao mesmo tempo condenados – não se sabe por quem, visto que Maquiavel não detalha essa parte da fábula – e acusadores. De outro lado, como acusadas, as mulheres. A tese com a qual os homens acusam é a de que depois que se casaram, suas mulheres os fizeram cometer atos que os levaram para o inferno. Quem julgará tais fatos? Os juízes – que são demônios. Estabelecidos os elementos da relação jurídica processual, evidenciam-se as partes processuais (acusadores, acusadas e juízes) e a tese acusatória utilizada. Os processos judiciais são fundamentados em relações muito similares, que na maioria das vezes, envolvem acusação, defesa, condenação, recurso e a busca pela justiça. Todas essas expressões estão presentes no vocabulário aplicado na referida obra, por Maquiavel. Por toda a fábula há elementos jurídicos. As expressões “condenando”, “acusem” “injustos” e “justiça”, utilizadas por Plutão – o maior juiz de todos os juízes – são todas encontradas no vocabulário jurídico. Além disso, o demônio Plutão é também um juiz exemplar, pois tenta ser imparcial e democrático, consultando seus pares, a bem de um julgamento justo, prudente e voltado para a busca verdade. Todas essas características são desejadas na composição do universo dos juízes. Assim, visando abordar, demonstrar e refletir sobre essas e outras questões relacionadas à presença e a linguagem do direito em Belfagor, se dará a comunicação.
Maquiavel, ciclos de governo e redução aos princípios
Luís Falcão (UFF)
A comunicação investiga o tema da fundação contínua, ou redução aos princípios, no pensamento político de Maquiavel. A fundação contínua é um ato coletivo ou individual que restabelece, mantem a conexão, entre um determinado momento da vida política da cidade e aquele de sua fundação propriamente. A função da redução aos princípios, através dessa conexão, é a de manter a cidade livre a partir do mecanismo de rememoração das causas que deram sentido à ação criadora das instituições, crenças e práticas fundamentais da república. A aparente constância das ordens fundamentais da república pode levar a uma interpretação de um “eterno retorno”, caracteristicamente medieval, ou à sustentação infinita dos ciclos polibianos de governo. Maquiavel, porém, é explícito quanto aos limites temporários dos ciclos. Uma vez que não são
parte da natureza, encontram necessariamente sua finitude quando da ruína final da cidade. Diante desse cenário teórico, argumenta-se que a fundação contínua não é um esforço de eternizar os ciclos polibianos, mas, ao contrário, o de expandir o ciclo tanto quanto possível. Rememorar as causas da fundação é diluir na memória coletiva os sentidos da liberdade e, com isso, manter a premência do povo como agente estabilizador da república, do mesmo modo que ocorre na transformação de cada forma de governo em outra quando do giro dos ciclos. Por fim, conclui-se que a redução aos princípios se liga à fundação de tal modo que se possa pensar em um continuum das causas da liberdade do início ao fim da história da cidade.
O lugar da imagem nos Ensaios
Ana Carolina Mondini (UFPR)
Antes da separação entre imaginação e intelecto, que foi bem demarcada, em especial, na época moderna, Montaigne parece oferecer um lugar à imagem mais compatível com a realidade humana. Ao considerar um sujeito não fragmentado, cujas operações espirituais operam em constante relação, inclusive em relação aos movimentos corpóreos, o filósofo deixa sugerido que a própria imaginação opera em cooperação com o intelecto. A reflexão sobre a imagem, no seio da filosofia montaigneana, faz-nos compreender, no entanto, que, mesmo que a imaginação atue com intelecto, é possível, posteriormente, atribuir determinada autonomia às imagens e, por conseguinte, a compreensão sobre os existentes planos de significação imagéticos no seio dos Ensaios.
Fortuna em dose dupla: no De Libero Arbitrio de Valla e nos Ensaios de Montaigne Ana Letícia Adami e Maria Cristina Theobaldo (UFMT)
O projeto “Contingencia, necesidad y libertad humana en la historia de la filosofía: rupturas y continuidades desde la Antigüedad clásica hasta la Modernidad temprana”, coordenado por Natalia Jackubeki e Natalia Strok, ambas da Universidade de Buenos Aires (UBA), e com a colaboração do Grupo de Pesquisa Questões do Renascimento (UFMT), visa reunir pensadores da tradição filosófica em torno da tópica da Fortuna. O projeto tem no seu arco de abrangência, de um lado, autores pouco ou menos conhecidos dos pesquisadores atuais (os ditos “autores pequeños”), mas cujas obras e atuação tiveram grande impacto em sua época. Nesse grupo estão nomes como os de Simone Porzio (1496-1554) e de Gerolamo Cardano (1501-1576). E de outro, alguns de consagrada relevância na história da filosofia. A presente comunicação é dedicada a dois filósofos desse último grupo: Valla e Montaigne. Ainda que o nome de Lorenzo Valla seja bastante conhecido pela Declamação contra a falsa Doação de Constantino, que lhe rendeu o epíteto de “pai da história moderna”, permanecem na obscuridade muitas de suas obras filosóficas que nos ajudariam a entender mais e melhor o desenrolar de muitas ideias correntes em sua época e depois. Exemplo disso é o opúsculo de Valla De Libero Arbitrio (1439), no qual nos interessa a relação entre a vontade humana e a presciência divina. Quanto a Montaigne, procuramos discutir a relação entre virtude e fortuna e a influência, supõe-se, que tal relação recebe do epicurismo. O caminho investigativo é conduzido pela hipótese de que a força da virtude reside na deliberação que põe em operação o cálculo dos desejos e a aliança entre corpo e alma, fazendo, assim, prevalecer uma autojurisdição interna, condição indispensável para dirimir e manobrar o poder da fortuna.
Da inconstância das nossas ações (II,1)
André Scoralick (USP)
Uma das consequências mais importantes da crítica cética é a perda do fundamento metafísico da moralidade – a ideia de Supremo Bem, fim último das ações humanas, horizonte regulador e parâmetro de orientação das condutas. No antigo estoicismo, era justamente esta ideia que orientava, coordenava e uniformizava as intenções do sábio, tornando-as constantes. Também era ela que permitia ao filósofo deduzir as leis de conduta que orientariam as ações do homem médio. Uma vez perdido esse télos, a vontade do agente perde seu rumo, sua direção: restam apenas impulsos despertados por representações que surgem diante de circunstâncias (ou a partir de estados de alma) contingentes – numa palavra, a inconstância. A partir deste quadro, a tarefa do moralista se complica: as ações que ele pretende julgar não podem mais ser referidas umas às outras (não se agrupam por relação de semelhança, nem se explicam por relação de causalidade), mas tem de ser julgadas isoladamente, caso a caso; os caracteres revelam-se complexos, variados, mutáveis; o discurso que pretenda representá-los deve acompanhar a inconstância de seu objeto; e deve representá-lo “por dentro”, pois é preciso julgar suas intenções, não suas ações. Enfim, é todo o projeto da pintura de si, eixo dos Ensaios, que emerge da crítica montaigniana da constantia estóica; mais do que isso, nela se assenta a própria gênese da forma ensaio e um novo programa para a filosofia moral vindoura.
O comércio com Licurgo e Platão
Maria Célia Veiga França (UFMG)
Os ensaios americanos de Montaigne fazem algumas referências explícitas ao comércio, sobretudo nos Coches, onde ele pergunta: “quem jamais estabeleceu tal preço para o serviço do comércio e do tráfico? Tantas cidades arrasadas, tantas nações exterminadas, tantos milhões de pessoas passadas a fio de espada, e a mais rica e bela parte do mundo convulsionada para a negociação de pérolas e de pimenta: mesquinhas vitórias! Jamais a ambição, jamais as inimizades públicas impeliram os homens uns contra os outros em hostilidades tão horríveis e calamidades tão miseráveis” (III, 6, p.188). Esta menção claramente negativa ao comércio, que temos em mente de forma mais imediata, corresponde ao estilo de crítica mais direta e feroz característico do capítulo dos Coches, que acompanha não somente um período mais violento da conquista, como a divulgação, em solo europeu, de informações mais precisas sobre as atrocidades perpetradas em solo americano.
Apesar de formular uma crítica menos frontal à entrada dos europeus em solo americano, o capítulo dos Canibais não deixa de fazer censuras pontuais a elementos da cultura europeia trazidos pela conquista. Um desses elementos é justamente o comércio, que surge no texto de forma aparentemente passageira, através de uma caracterização dos tupinambás que Montaigne desejaria fazer à Platão, para lhe informar que esse “é um povo no qual não há a menor espécie de comércio” (I, 31, p. 309). Tal referência poderia até ser interpretada como uma pintura negativa, por algum leitor que se deixasse guiar pela tradição renascentista das viagens que define a barbárie indígena pela ausência dos elementos mais básicos da civilização europeia – tais como o comércio, as letras, a religião etc.
Ora, a passagem que menciona a ausência de comércio entre os tupinambás não nos parece ser a única alusão ao comércio, nem a única crítica feita a ele. Poucas linhas acima desse trecho encontramos uma referência à Licurgo e à Platão que, à princípio, parece não ter grande
relação com nosso tema: “Desgosta-me que Licurgo e Platão não o tenham tido [o conhecimento desses povos], pois me parece que o que na prática vemos naqueles povos sobrepuja não apenas todas as descrições com que a poesia embelezou a idade de ouro, e todas as suas invenções para imaginar uma condição humana feliz, mas ainda a concepção e o próprio desejo da filosofia” (I, 31, p. 308).
Se recuperarmos a reflexão proposta no capítulo VII do Método da História de Bodin, veremos que a menção a esses dois autores por Montaigne certamente não é gratuita. No texto em questão, Bodin não somente cita Licurgo e Platão também no contexto da conquista americana, mas defende o comércio com as terras recém atracadas – indo contra os dois autores gregos que, segundo ele, defendiam de preferência um isolamento de suas sociedades. Parece-nos pertinente ver no texto de Montaigne não somente uma discussão com Bodin, relativa à questão do comércio, mas ainda uma oposição quanto à relação ao desenvolvimento do comércio com o Novo Mundo. Se quiséssemos ser mais ousados, poderíamos inclusive pensar a presença desses dois autores gregos nos Canibais como um argumento anticolonialista, uma vez que a legalidade do comércio com o continente americano (pensada, entre outros, pelo espanhol Vitoria) funciona como uma chave jurídica que abre a possibilidade para a conquista.
O tema clássico do Útil e do Honesto em Michel de Montaigne
Sérgio Xavier (UNIFESP)
No primeiro capítulo do terceiro volume de seus Ensaios, Montaigne toma para si o problema antigo do conflito entre o Útil e o Honesto, abordando à sua própria maneira uma tópica que remonta ao menos à reflexão sobre a Justiça nos primeiros livros da República de Platão e que tem sua formulação mais célebre e influente em Dos Deveres de Cícero. Deste modo, o ensaísta procura posicionar-se em relação a algumas das correntes mais expressivas que dão o tom dos debates políticos de seu tempo, do antimaquiavelismo e do neoestoicismo, equacionando de certo modo, o valor que lhe é mais caro, da integridade e liberdade individuais com uma determinada proposição de conduta pública e política.
A educação no tempo de Gournay
Cinelli Tardioli Mesquita (UFMG)
O presente trabalho visa divulgar parte de nossa pesquisa de doutorado. Nossa tese geral é mostrar como Marie de Gournay (1565-1645) defendeu que as teorias sobre a inferioridade da natureza feminina em relação à masculina são frutos da ignorância de seu tempo. Para ela, defender uma hierarquia da natureza humana dividida entre feminina e masculina era ignorar o papel crucial da educação (um fenômeno social e não natural) no processo de diferenciação dos sexos. A fim de fundamentar nossa tese geral e conferir a validade dos argumentos de Gournay, começamos por fazer uma pesquisa sobre a educação nos séculos dezesseis e dezessete. Portanto, o presente trabalho versará sobre estes primeiros passos da pesquisa; ou seja, uma abordagem mais geral sobre a educação no tempo de Gournay.
O lugar da imagem nos Ensaios
Ana Carolina Mondini (UFPR)
Antes da separação entre imaginação e intelecto, que foi bem demarcada, em especial, na época moderna, Montaigne parece oferecer um lugar à imagem mais compatível com a realidade humana. Ao considerar um sujeito não fragmentado, cujas operações espirituais operam em constante relação, inclusive em relação aos movimentos corpóreos, o filósofo deixa sugerido que a própria imaginação opera em cooperação com o intelecto. A reflexão sobre a imagem, no seio da filosofia montaigneana, faz-nos compreender, no entanto, que, mesmo que a imaginação atue com intelecto, é possível, posteriormente, atribuir determinada autonomia às imagens e, por conseguinte, a compreensão sobre os existentes planos de significação imagéticos no seio dos Ensaios. Palavras-chave: Montaigne. Imagem. Intelecto.
Anotações sobre a noção de povo na obra de Maquiavel
Anotações para conversa com José Luiz Ames (extensiva aos colegas do GT “Ética e Política no Renascimento”) sobre a noção de povo na obra de Maquiavel
Por Sérgio Cardoso ( 17/12/2020)
Se reparamos bem, no elenco das questões e das exegeses de texto propostas por Ames — exímio leitor de Maquiavel –, destaca-se aquela da natureza do conflito civil e, em consequência, a da necessária identificação dos polos desse conflito, grandes e povo. Muitos de nossos doutorandos, acertadamente, têm apontado seus trabalhos para esta questão – buscando, sobretudo, a noção de ‘povo’, que percebem estar longe de ser incontroversa. Pois, deixando de lado a desafiante compreensão do termo ‘humor’ (e seus equivalentes habituais: apetite, pulsão, desejo), que é o terreno comum dos dois polos, o gênero que os define (grandes e povo designam/são humores políticos) – costumamos acreditar que o termo ‘grandi’ (os ‘grandes’) seja mais facilmente determinável: trata-se, pensamos, da indicação genérica (sintética) para os estratos sócio-econômico-políticos elevados, os ricos e poderosos, ainda que tal sentido pareça às vezes mancar quando associado ao termo ‘humor’ e ao vocabulário do desejo, como acontece nos três enunciados canônicos relativos à divisão civil: o início do capítulo IX do Príncipe, o capítulo 4 do livro I dos Discorsi e o capítulo 1 do livro III das Istorie. No entanto, no caso do termo ‘popolo’, os obstáculos são ainda maiores. Com o termo ‘popolo’ a questão se complica. Em primeiro lugar, porque a ele se associa um rico domínio de vocábulos. Aos derivados do próprio termo, somam-se ainda outros, como plebe, plebei, ignobili, vulgo, multitudine, universale. Talvez se possa dizer que a determinação do conceito ‘povo’ seja para nós o ponto nevrálgico da leitura da obra de Maquiavel.
Ames certamente concorda comigo quanto ao caráter controverso do sentido desse vocábulo, tanto que o perscruta e investiga em vários textos, três deles dedicados ao conceito em cada uma das obras maiores do nosso autor: o Príncipe, os Discursos e as Histórias Florentinas. Creio, porém, poder começar trazendo para nossa conversa o ensaio com que ele me honrou em um livro coletivo de homenagem (“Espaços da Liberdade”[1]), por se tratar de um estudo que, me parece, desenha o horizonte mais amplo de sua abordagem da noção, o texto denominado “Concepção de Povo em Maquiavel, uma tentativa de aproximação”. Vamos, pois, a ele.
O texto se inicia lembrando o reiterado uso do termo ‘popolo’ nas três grandes obras — objeto de comentários anteriores — e logo formula as seguintes perguntas: “será possível determinar uma concepção específica de povo na obra de Maquiavel? A concepção de povo seria uma figura estática e homogênea ou mutável e multifacetada?” (Birchal e Theobaldo, 2018, p. 93). Em continuidade a essas interrogações, ele emenda: ”Nosso propósito neste texto é, por um lado, examinar até que ponto o lugar comum das interpretações [a ideia de povo como um ‘organismo passivo’, sem capacidade autônoma] se sustenta e por outro lado, averiguar se é pertinente reduzir as considerações de Maquiavel a uma concepção homogênea e estática, como geralmente aparece nos comentadores” (idem, ibidem). As duas perguntas receberão dele respostas negativas: o lugar comum não se sustenta e o termo povo não tem um sentido unívoco, diz. Seu texto terá uma visada crítica.
Ames começa pelo ‘estado da arte’ relativo à questão, tal como proposto por Maurizio Suchowlanki, que indica para ela três grandes linhas de interpretação: uma perspectiva ‘elitista’ – ideia de um povo passivo, moldado e manipulado pelos grandes, através de leis e da religião (Strauss, Mansfield, Paul Rahe e ainda outros); uma perspectiva republicano-institucionalista, aquela da escola de Cambridge, que atribui ao povo o papel de vigilância, tutela e controle da tendência ao arbítrio por parte dos governos e da atuação dos ‘grandi’ (um papel que o povo só poderia exercer quando enquadrado por leis e instituições); finalmente, a perspectiva ‘populista’, que confere ao povo um papel ativo: entende que Maquiavel atribui ao povo um papel efetivo na constituição do governo (McCormick , Jurdjevic, Vatter, Najemy, Del Lucchese, etc).
Entretanto, a Ames, como ao próprio Suchowlanki e a Stefano Visentin (que vem adiante), não interessa de imediato discutir estas diferentes perspectivas; interessa-lhe observar que todas elas trazem o entendimento de que, em toda a obra de Maquiavel, operaria uma mesma concepção de povo, constante e uniforme, o que seria um engano. Para Suchowlanski haveria um corte na obra, em função de duas concepções diversas. De um lado, n’O Príncipe e nos Discursos, o povo apareceria fundamentalmente como passivo (evidentemente com nuanças entre as duas obras). Segundo esse comentador, mesmo nos Discursos (mais ambíguos) os plebeus surgiriam cooptados e manipulados pela aristocracia, mormente através da religião. No entanto, nos escritos posteriores a 1520 (Istorie, Discorso, etc – textos em que Maquiavel tematiza repúblicas do presente, nota Suchowlanki), o povo surge como politicamente ativo, e com um comportamento semelhante ao dos grandes: ele quer ter parte no governo para defender seus interesses (que seriam fundamentalmente de ordem econômica).
No final do texto, Ames criticará Suchowlanski por atribuir uma mesma concepção ao termo povo n’O Príncipe e nos Discorsi, mas, sobretudo por reincidir em uma perspectiva “fechada”, homogênea e estática, do conceito — ainda que, no caso, sejam duas, em função dos objetos das considerações das obras: repúblicas Antigas, de um lado, e repúblicas – comerciais – modernas, de outro. Assim, toda a simpatia de Ames vai para a interpretação de Stefano Visentin, para o qual não há uma fisionomia histórico-sociológica unívoca do povo na obra de Maquiavel. Diz Ames: “por considerar o povo um ator político, Visentin mostra que ele emerge em cada conjuntura histórica concreta com uma ‘face’ ou ‘figura’ determinada” (idem, p. 104). Assim, nos depararíamos: a) com ‘povo’ como ‘plebe’ (aquele do confronto com os grandes); b) com ‘povo’ como multidão constituinte (nos capítulos finais de Discorsi I, 44 em diante); c) com ‘povo’ como Príncipe — ou n’O Príncipe (relação ‘dialética entre Príncipe e Povo); d) com ‘povo’ como facção (povo dividido pela busca de bens e poder). Visentin preservaria, pois, a diversidade e fluidez do uso da noção na obra, identificando através dela um espaço político polimórfico, marcado pelo surgimento de novas figuras de atores coletivos, ainda para além das quatro destacadas em seu texto.
Porém, para Ames, mais importante que a indicação desta plasticidade da noção, parece ser o rompimento de Visantin com a ideia de passividade do povo, que viria da tradição e se manteria, para o Príncipe e os Discorsi, em Suchowlanski. Sob um principado, segundo Visentin, a atividade popular se manifesta na pressão das expectativas do povo em relação ao Príncipe (a relação dialética do Príncipe com o imaginário popular). Nos Discorsi (nas repúblicas) a resistência popular à dominação dos grandes faria nascer as leggi ed ordini (“a lei nasce do, e não contra, o desejo do povo” – idem, p. 117 –, lembra Ames). Já nas Istorie, o povo buscaria ocupar um lugar na estrutura do poder político e econômico da cidade (buscaria comandar, partilhar o poder com os grandi).
Gostaria, no entanto, de me deter em um ponto desse comentário relativo às Istorie. No correr do texto, ao trazer suas próprias considerações sobre o papel do povo nessas Histórias Florentinas, de maneira sutil e gentil, Ames faz um “reparo” (idem, p. 113) à minha própria visão sobre a natureza da atuação popular nessa obra. Em primeiro lugar, ele diz, minha interpretação suporia que “Maquiavel lidou com a mesma ideia de povo no curso de toda a sua obra, ideia passível de ser resumida nesta frase: ‘… povo é o portador de universais políticos’” (idem, p. 113), enquanto ele mesmo – Ames – pensaria, como Visentin, ‘povo’ como um “conceito polimórfico” (idem, p. 114).
Aqui, sem dúvida, Ames tem razão e compreende bem minha visão da questão. Penso efetivamente que, não obstante a oscilação do vocabulário (popolo, plebe, plebei, universale) e das situações histórico-políticas em que esses termos são mobilizados no contexto da teoria maquiaveliana da divisão civil, da teoria da oposição de humores diversos de que nascem as instituições e leis republicanas (“todas as leis que se fazem em favor da liberdade [republicana] nascem da desunião destes humores” – Discorsi I, 4[2]), o polo popular\plebeu é aquele da afirmação de universais políticos. Em outros termos: conceitualmente, no interior da construção da teoria política maquiaveliana, o povo é mesmo, no meu entender, “o portador de universais políticos” e, assim, “o guardião da liberdade” republicana ou, mais precisamente, ele é o fundamento das formas políticas – não despóticas — de governo e ordem social (insisto aqui no plural, pensando nos principados políticos, também eles fundados na força da negação popular da opressão dos grandes, aí não desdobrada em leis, mas capitalizada por um Príncipe). Enfim, pode haver, e há, acredito, oscilações e inflexões no emprego e nas referências sociológicas e históricas dos termos popolo e plebe no decorrer da obra, mas não na construção conceitual da filosofia política maquiaveliana – se há uma, como estou convencido que há, e de grande coerência e consistência, ao menos no interior das chamadas ‘grandes obras’.
Mas, nessas mesmas considerações relativas ao “Papel do povo em História de Florença”, Ames sugere também, muito sutil e delicadamente — como sempre –, fazendo alusão a uma passagem de meus comentários sobre as Istorie (uma passagem que, segundo ele, seria “corajosa e instigante” – Birchal e Theobaldo, 2018, p. 113 — evitando evidentemente a expressão ‘temerária’), que me coloco no campo daqueles que expressam “uma visão crítica, negativa, do papel do povo e pessimismo em relação à superação das divisões desagregadoras da cidade” (idem, p.112). Enfim, põe-me do lado daqueles que, quanto às Istorie, veem grandes e povo retratados, ambos, como agentes de dominação (Cf. idem, p. 113).
Aqui, penso que Ames talvez não tenha razão. Creio que certamente não me compreendeu bem. Pois, o que busquei dizer nesses meus comentários das Istorie é que, no ‘tumulto dos Ciompi’, a plebe e o popolo minuto florentinos (como categorias sociológicas[3]), ao ocuparem o polo do desejo de liberdade, o polo político da negação da opressão dos grandes, e ao alcançarem os intentos de sua revolta (ao alcançarem a instituição de novas leis e direitos, inclusive de participação na administração da cidade), ao invés de simplesmente deixarem governar as leis instituídas (como deve ocorrer nas verdadeiras repúblicas), incorrem na ilusão de encarnarem o sujeito das leis, dos ‘universais políticos’, na ilusão de ser ‘o povo’, em sua determinação positiva. Colocam-se, assim, de maneira exorbitante, na posição de tutores das leis e do governo, ao invés de súditos das leis e das instituições de direito.
Porém, é preciso dizer que, no meu entender, seria também excessivo, e por demais simplista, dizer que a plebe e o popolo minuto florentinos passaram, então, a “querer como os grandes”, a querer dominar e defender seus interesses “de parte”. Pois, aqui, a ilusão é aquela de uma parte acreditar poder se colocar no lugar do todo – encarnar o universal –, algo a que os grandes nunca pretenderam. Estes querem, cada um, ‘defender o seu’; pivotam sempre sobre a particularidade de seus interesses. Ora, não é esse, certamente, o caso da ação da plebe nesse episódio da revolta dos Ciompi, mesmo quando ela quis “governar sozinha”. Mesmo na derrapagem desastrosa de seu desejo de liberdade, a plebe não deseja “como os grandes”; permanece ilusoriamente movida pelo humor da negação da opressão da sua opressão.
Nisso, Ames e eu seguramente estamos de acordo: o povo (em sentido político, não sociológico ou econômico) quer leis e continua sempre para Maquiavel o “guardião da liberdade”, isto é, o fiador dos direitos (universais políticos, sempre históricos) e das instituições republicanas. Enquanto povo, a plebe não é movida pelo desejo (particular ou faccioso) de amealhar bens ou de dominar; quer a segurança da proteção das leis (nas quais um ‘todos’, um universal, sempre se abriga), não para ‘viver cada um como bem entender’, como pretendia, para a pulsão popular, a psicologia social dos Antigos. Enfim, há ‘desejo popular’ para Maquiavel quando uma ‘parte’ é movida pelo desejo de não ser dominada pelos grandes, movida pelo desejo de gozar da proteção institucional das leis (ou mesmo da proteção – imaginária – de um Príncipe). No entanto, sobre esse registro político republicano, acredito que não basta dizer que “a lei é o resultado da ação de resistência que o povo oferece à pretensão de dominação dos grandes” (idem, p.116). É preciso mostrar ‘como e porque’ isto se dá, como e porque se passa da negação da opressão às instituições (históricas) republicanas e às leis positivas.
No seu livro “Conflito e Liberdade”, já pelo final do último capítulo, Ames parece concordar comigo sobre a exigência de colocar essa questão que assinalo, embora conteste minha resposta. Ele a lembra por duas vezes: “A questão – diz – é compreender esta condição do povo como ‘autor das leis’”[4], voltando a uma formulação semelhante na página seguinte. A expressão “autor das leis” é minha, mas a pergunta trazida por Ames não é estranha à sua compreensão do povo como ‘potência instituinte’ e à sua constatação de que o modo maquiaveliano de pensar a cidade como um espaço de conflito “institui o povo, de certo modo, como ‘sujeito legislativo’” (Idem, p.209). Esta última expressão, agora, é dele, que a constrói, certamente, a partir da minha afirmação, citada em seu texto, de que é possível ver no povo “o sujeito mesmo da invenção histórica de direitos” (idem, p.204). Assim, ao que tudo indica, a pergunta nos é comum, estando a divergência na resposta. Para Ames, se há uma ”função legislativa do povo” (idem, p. 210), ela adere à ação de resistência popular (“o povo cumpre essa função [legislativa] na medida mesma em que resiste à opressão dos grandes” – idem, p. 210, diz). Ela se dá, continua ele, “de forma negativa (pela resistência, pela oposição – barulho e gritaria) e não de forma positiva”, segundo eu mesmo sugeriria (cf. idem p. 209). “Ou seja – continua, logo adiante –, como e por que a condição do povo como ‘sujeito legislativo’ para Maquiavel implicaria em um papel que excederia à resistência popular ativa, ‘ao barulho e gritaria’, como diz o florentino nos Discursos?” (idem, p. 210 – grifos meus).
Preciso esclarecer que em momento algum me ocorreu afirmar que o humor popular deixaria de ser estritamente negativo, pura oposição à opressão, como compreendeu Ames: não há metamorfose do ‘desejo político popular’ em busca de interesses ou fins particulares próprios; enfim, não há ‘pura positividade’ do desejo popular. Insisto nisso no próprio texto mobilizado por Ames. Escrevi ali: “(…) consideramos imperativo assumir, desde o início, com Lefort, o caráter ‘puramente negativo’ desse desejo”[5] – que se mantém como puro desejo de liberdade. A questão que coloco não é a da positivação do humor popular; é uma outra, bem diversa: “como se produzem as leis [positivas] a partir do desejo [negativo] de liberdade (…) que define politicamente o povo” (idem, p. 239). Em outras palavras: como esta atividade popular, estritamente negativa, redunda em instituições e leis positivas, ou seja, produz repúblicas. Lefort, com razão, diz que Maquiavel não responde diretamente a essa questão. Ele quereria, antes, apenas indicar (e Ames também, com razão, volta por sua vez a insistir nisso) o fundamento popular das instituições políticas: “o caminho da obtenção das próprias leis – diz Lefort – não é diretamente tematizado” (idem, p. 239). Permanecemos no registro da afirmação do vínculo entre as leis e a liberdade, entre Lei e negação da opressão.
Aceito isso, eu mesmo tentei buscar no interior da teoria política maquiaveliana uma resposta que fosse consistente com ela para a nossa pergunta (a qual repito: ‘como e porque a atividade do humor popular, puramente negativo, produz as leis (históricas) republicanas?’) Não se trata, por certo, de atribuir ao povo uma atividade propriamente de inteligência e elaboração legislativa, nem muito menos de encontrar nele uma Vontade Geral de perfil rousseauniano, já que aqui o povo sequer é constituído pela massa dos integrantes da cidade ou pela totalidade dos implicados no corpo político. É preciso lembrar, como assinala, aliás, o próprio Ames, que “o povo nunca é concebido como totalidade; ele é sempre parte, embora seja movido por um humor universal (desejo de liberdade), por oposição ao humor dos grandes (desejo de poder), necessariamente particular” (Ames, 2017, p. 212). O que pretendi dizer, e que aqui quero reiterar, é simplesmente que, no meu entender, a negatividade do humor popular deve ser pensada sempre como uma negação determinada, dado que o polo negativo do conflito civil se opõe sempre a um polo particular positivo, às múltiplas afirmações particulares dos desejos, sempre determinados, dos grandes, que, assim, determinam a negação. Em outras palavras: a oposição grandes\povo ocorre entre um particular positivo e um universal negativo, o polo do humor popular. O desejo de liberdade não é um desejo abstrato; é negação determinada (histórica) da particularidade opressiva de desejos dos grandes, mostrando-se justamente por isso produtor de universais histórico-políticos (leggi ed ordini). A rigor, então, a questão é bastante simples: o desejo popular é sempre efetivamente pura negação (“não ser dominado e oprimido”); porém, negação/contradição: negação determinada pela oposição ao desejo positivo dos grandes, operando na história.
Enfim, amigo Ames, estou de acordo com praticamente todos os pontos que, a certa altura de seu livro, você enuncia como “os elementos do nosso [seu] argumento” (idem, p. 207). Minha tentativa é tão somente a de mostrar ‘como e porque as leggi ed ordini emergem diretamente do conflito’; como e porque o humor popular “se positiva” (se determina) nos ordenamentos institucionais (republicanos), justamente os pontos d) e e) do elenco de elementos do seu “argumento”(*).
Certamente continuaremos nosso diálogo, mas quero parabenizá-lo por seus produtivos estudos maquiavelianos, que tanto têm ajudado a nós todos a levar adiante nossas interrogações políticas.
(*)Transcrevo toda a passagem, para maior facilidade do leitor: ”Aparecem já aqui elementos centrais do nosso argumento. Para Maquiavel: a) as leggi ed ordini são o resultado do confronto entre povo e grandes; b) o conflito entre grandes e povo não é simples confrontação de interesses, mas oposição de projetos políticos (dominação versus não dominação); c) o confronto tem sempre em vista um resultado institucional, a criação de mecanismos legais de controle da desmesura , particularmente do desejo de opressão dos grandes; d) as leggi ed ordini emergem do (e não contra o) tumulto e, por isso, não se impõem externamente às partes em confronto; e) pelo fato de as leggi ed ordini resultantes do conflito terem por ’matéria’ a salvaguarda da liberdade, podemos dizer que, de certo modo, o humor popular “se positiva” nos ordenamentos institucionais; f) o que impede às leggi ed ordini “se cristalizarem” sob o aparato jurídico-político é a condição de exterioridade do povo como potência instituinte viva que, em virtude do caráter constitutivo da divisão, conserva a provisoriedade de todo o instituído; g) jamais há uma forma constitucional definitivamente instituída, um aparato jurídico-político definitivo com autoridade soberana, uma vez que a luta política, que se dá na esfera factual e pré-legal, conserva sua condição de potência instituidora do normativo/jurídico. A sequência do texto limita-se a uma tentativa de detalhar um pouco mais e melhor esses pontos”(in Conflito e Liberdade, p. 207).
[1][1] Birchal, Telma de Souza e Theobaldo, Maria Cristina (orgs), Espaços da Liberdade, Homenagem a Sérgio Cardoso. Cuiabá:EdUFMT, 2018.
[2] Maquiavel, Discursos sobre a Primeira Década de Tito Lívio, São Paulo: Martins Fontes,2007, p. 22.
[3] Desenvolvo essa questão em um dos capítulos do meu livro ”Maquiavelianas, lições de política republicana” (no prelo, Editora 34), no qual examino as passagens pertinentes do L III das Istorie.
[4] Ames, j. L., Conflito e liberdade, a vida política para Maquiavel, Curitiba: CVR, 2017, p. 210.
[5] [5] Cardoso, Sérgio, Em direção ao núcleo da ‘obra Maquiavel’: sobre a divisão civil e suas interpretações, São Paulo: Revista Discurso, 45/2, 2015. P. 242.