Cara Fabiana,
Não me contive em vir lhe trazer meus parabéns e lhe dizer, ainda uma vez, da minha satisfação de ter participado de sua banca. De um lado, por ver em você toda uma nova geração de “maquiavelianos” competentes surgindo entre nós – comprovada pela qualidade de seu trabalho e pela formação que ele mostra; de outro, certamente, pelo encontro com os amigos, com os quais sempre vou aprendendo bastante, como ocorreu na sua defesa.
Gostei muito das arguições e também dos comentários que você trouxe para cada uma delas. Questões fundamentais como a do Visentin sobre o sentido prático da reflexão política de Maquiavel (que a gente frequentemente esquece) e sua aderência aos acontecimentos, à contingência; a indeterminação do desejo popular em contínuo movimento instituinte. As oportunas perguntas da Flávia sobre a relação da cidadania militar e o conceito de povo. As excelentes considerações do Helton sobre a oposição conceito e tempo, o excesso irredutível da história em relação aos conceitos.
Quanto aos meus próprios comentários, tenho um pouco de dúvida se fui bastante claro nos dois pontos que eu quis ressaltar. Primeiro, sobre suas notas relativas à volta do par ‘matéria/forma’ nos textos de Maquiavel: o povo como ‘matéria’ apta a receber uma forma política da parte do Príncipe, o tema espinhoso da fundação. O que eu quis, na verdade, sugerir foi que talvez se devesse frisar menos uma oposição entre fundação originária e re-forma (ou mesmo re-fundação) de uma “forma comprometida” (mas não sem forma, disforme, como você diz), e mais a passagem de formas não-políticas (despóticas e ‘licenciosas’) para as formas políticas — seja no caso do principe nuovo, o caso do principado político, seja no caso das repúblicas. Enfim: há um “pré-político”, que não se confunde com uma dispersão primitiva dos homens, mas que remete ao não-político, o despotismo e a licença.
É claro que as sociedades políticas estão em contínua mudança (Lefort mostra que elas são propriamente ‘históricas’), pois opera nelas continuamente a divisão grandes/povo, que produz continuamente novas oposições, novas leis, novas instituições; porém, não é esse o caso da ‘fundação’ de uma ordem política, o “dar ao povo uma unidade política” (tese p.110). Trata-se aí da atividade própria de toda ordem política, da operação política do negativo (mesmo que essa negação já estivesse presente, de algum modo, no momento da fundação; pois, o desejo de bens e domínio já opera nesse momento, e desde sempre, entre os homens, suscitando a negação da opressão que ele enseja e que o fundador ‘catalisa’, aquela negação que dá origem às leis e sustenta o ato da fundação). Mas veja que a fundação de uma ordem política qualquer se assemelha sim a uma fundação ‘originária’: você verá em Discorsi I, 9, que Maquiavel, ao entrar nas considerações sobre a fundação, já no título, fala em “ordenar uma república nova ou reformá-la inteiramente com ordenações diferentes das antigas”, em casos de extrema corrupção, não só da cabeça, mas já do busto e dos membros (Cf. I, 17), portanto em casos de inteira corrupção e licença [ e lembremo-nos da exortação à “virtù di uno spirito italiano” no capítulo final d’ O Príncipe: foi preciso, ele diz, que a Itália “fussi più stiava che li ebrei, più serva che ‘persi, più dispersa che gli ateniesi: sanza capo, senza ordine, batuta, spogliata, lacera, corsa, e avessi sopportato d’ogni sorte ruina”
Minha segunda questão foi relativa ao seu capítulo três: “Povo como parte”, que nos remete diretamente à teoria da divisão civil e da natureza do conflito político. Aí, lembrei na defesa, você fala em ‘equilíbrio’ (Frosini) dos humores, em ‘mistura’ (Balestrieri) e, finalmente, em ‘partilha do exercício do poder’. Como sugeri naquele momento, no meu entender, a relação
grandes/povo certamente não pode ser de equilíbrio, visto que não se trata de duas pulsões ‘positivas’, diversas na sua positividade, mas de uma oposição de forças ‘contrárias’ (ou mesmo contraditórias, como tenho sustentado), sendo, portanto, resistentes a ‘misturas’ e também a qualquer ‘partilha do poder’. Mesmo quando há nas instituições republicanas partilha das magistraturas (como ocorre nas instituições estabelecidas no ‘Tumulto dos Ciompi’ entre o popolo – cidadãos inscritos na Arti, nas corporações de ofícios – e a plebe – aqueles até aí destituídos de cidadania social e política), o que se dá é a produção de espaços institucionais ordinários de disputa, de oposição, a produção de canais institucionais para o exercício político do “indépassable” conflito dos humores de ‘grandes e povo’ (a designação genérica para todas as oposições políticas).
Nas verdadeiras repúblicas, não governam nem o povo nem os grandes; governam as Leis, os universais políticos produzidos pela negação popular (pelo Universale) da opressão, particularista, dos grandes. No principado político governa, autocraticamente, um sujeito político sustentado pela ‘amizade’ do povo, sendo esse príncipe um ‘instrumento’, um canal – imaginário – de vazão do desejo negativo do povo, de sua oposição aos grandes. Enfim, repúblicas e principados políticos, são formas ‘ordinárias’ do exercício da negação popular do desejo de dominação dos grandes – o desejo que, não barrado, leva a cidade na direção do despotismo de facções ou à corrupção da Licença. Assim, as principais oposições estabelecidas por Maquiavel me parecem ser: “regimes políticos e não-políticos”, além da Licença; entre os regimes políticos, “Repúblicas e Principados”; com seus momentos de “fundação e corrupção”; e quanto à atividade política (popular), seus “modos ordinários e extraordinários” (institucionais ou extra institucionais; ambos, aliás, marcados por sentimentos hostis entre os opositores e, mesmo no primeiro caso — o dos modos ordinários –, uma certa violência; pois, nunca há ‘concórdia’).
Cara Fabiana, volto a essas questões por ter ficado com a impressão de não ter podido ser suficientemente claro em alguns de meus comentários de passagens de seu trabalho, que apreciei muito. Assim, decidi aproveitar essa mensagem de parabéns para esticar nosso diálogo.
Parabéns, portanto, por sua tese, colega doutora.
Sérgio