Anotações para conversa com José Luiz Ames (extensiva aos colegas do GT “Ética e Política no Renascimento”) sobre a noção de povo na obra de Maquiavel
Por Sérgio Cardoso ( 17/12/2020)
Se reparamos bem, no elenco das questões e das exegeses de texto propostas por Ames — exímio leitor de Maquiavel –, destaca-se aquela da natureza do conflito civil e, em consequência, a da necessária identificação dos polos desse conflito, grandes e povo. Muitos de nossos doutorandos, acertadamente, têm apontado seus trabalhos para esta questão – buscando, sobretudo, a noção de ‘povo’, que percebem estar longe de ser incontroversa. Pois, deixando de lado a desafiante compreensão do termo ‘humor’ (e seus equivalentes habituais: apetite, pulsão, desejo), que é o terreno comum dos dois polos, o gênero que os define (grandes e povo designam/são humores políticos) – costumamos acreditar que o termo ‘grandi’ (os ‘grandes’) seja mais facilmente determinável: trata-se, pensamos, da indicação genérica (sintética) para os estratos sócio-econômico-políticos elevados, os ricos e poderosos, ainda que tal sentido pareça às vezes mancar quando associado ao termo ‘humor’ e ao vocabulário do desejo, como acontece nos três enunciados canônicos relativos à divisão civil: o início do capítulo IX do Príncipe, o capítulo 4 do livro I dos Discorsi e o capítulo 1 do livro III das Istorie. No entanto, no caso do termo ‘popolo’, os obstáculos são ainda maiores. Com o termo ‘popolo’ a questão se complica. Em primeiro lugar, porque a ele se associa um rico domínio de vocábulos. Aos derivados do próprio termo, somam-se ainda outros, como plebe, plebei, ignobili, vulgo, multitudine, universale. Talvez se possa dizer que a determinação do conceito ‘povo’ seja para nós o ponto nevrálgico da leitura da obra de Maquiavel.
Ames certamente concorda comigo quanto ao caráter controverso do sentido desse vocábulo, tanto que o perscruta e investiga em vários textos, três deles dedicados ao conceito em cada uma das obras maiores do nosso autor: o Príncipe, os Discursos e as Histórias Florentinas. Creio, porém, poder começar trazendo para nossa conversa o ensaio com que ele me honrou em um livro coletivo de homenagem (“Espaços da Liberdade”[1]), por se tratar de um estudo que, me parece, desenha o horizonte mais amplo de sua abordagem da noção, o texto denominado “Concepção de Povo em Maquiavel, uma tentativa de aproximação”. Vamos, pois, a ele.
O texto se inicia lembrando o reiterado uso do termo ‘popolo’ nas três grandes obras — objeto de comentários anteriores — e logo formula as seguintes perguntas: “será possível determinar uma concepção específica de povo na obra de Maquiavel? A concepção de povo seria uma figura estática e homogênea ou mutável e multifacetada?” (Birchal e Theobaldo, 2018, p. 93). Em continuidade a essas interrogações, ele emenda: ”Nosso propósito neste texto é, por um lado, examinar até que ponto o lugar comum das interpretações [a ideia de povo como um ‘organismo passivo’, sem capacidade autônoma] se sustenta e por outro lado, averiguar se é pertinente reduzir as considerações de Maquiavel a uma concepção homogênea e estática, como geralmente aparece nos comentadores” (idem, ibidem). As duas perguntas receberão dele respostas negativas: o lugar comum não se sustenta e o termo povo não tem um sentido unívoco, diz. Seu texto terá uma visada crítica.
Ames começa pelo ‘estado da arte’ relativo à questão, tal como proposto por Maurizio Suchowlanki, que indica para ela três grandes linhas de interpretação: uma perspectiva ‘elitista’ – ideia de um povo passivo, moldado e manipulado pelos grandes, através de leis e da religião (Strauss, Mansfield, Paul Rahe e ainda outros); uma perspectiva republicano-institucionalista, aquela da escola de Cambridge, que atribui ao povo o papel de vigilância, tutela e controle da tendência ao arbítrio por parte dos governos e da atuação dos ‘grandi’ (um papel que o povo só poderia exercer quando enquadrado por leis e instituições); finalmente, a perspectiva ‘populista’, que confere ao povo um papel ativo: entende que Maquiavel atribui ao povo um papel efetivo na constituição do governo (McCormick , Jurdjevic, Vatter, Najemy, Del Lucchese, etc).
Entretanto, a Ames, como ao próprio Suchowlanki e a Stefano Visentin (que vem adiante), não interessa de imediato discutir estas diferentes perspectivas; interessa-lhe observar que todas elas trazem o entendimento de que, em toda a obra de Maquiavel, operaria uma mesma concepção de povo, constante e uniforme, o que seria um engano. Para Suchowlanski haveria um corte na obra, em função de duas concepções diversas. De um lado, n’O Príncipe e nos Discursos, o povo apareceria fundamentalmente como passivo (evidentemente com nuanças entre as duas obras). Segundo esse comentador, mesmo nos Discursos (mais ambíguos) os plebeus surgiriam cooptados e manipulados pela aristocracia, mormente através da religião. No entanto, nos escritos posteriores a 1520 (Istorie, Discorso, etc – textos em que Maquiavel tematiza repúblicas do presente, nota Suchowlanki), o povo surge como politicamente ativo, e com um comportamento semelhante ao dos grandes: ele quer ter parte no governo para defender seus interesses (que seriam fundamentalmente de ordem econômica).
No final do texto, Ames criticará Suchowlanski por atribuir uma mesma concepção ao termo povo n’O Príncipe e nos Discorsi, mas, sobretudo por reincidir em uma perspectiva “fechada”, homogênea e estática, do conceito — ainda que, no caso, sejam duas, em função dos objetos das considerações das obras: repúblicas Antigas, de um lado, e repúblicas – comerciais – modernas, de outro. Assim, toda a simpatia de Ames vai para a interpretação de Stefano Visentin, para o qual não há uma fisionomia histórico-sociológica unívoca do povo na obra de Maquiavel. Diz Ames: “por considerar o povo um ator político, Visentin mostra que ele emerge em cada conjuntura histórica concreta com uma ‘face’ ou ‘figura’ determinada” (idem, p. 104). Assim, nos depararíamos: a) com ‘povo’ como ‘plebe’ (aquele do confronto com os grandes); b) com ‘povo’ como multidão constituinte (nos capítulos finais de Discorsi I, 44 em diante); c) com ‘povo’ como Príncipe — ou n’O Príncipe (relação ‘dialética entre Príncipe e Povo); d) com ‘povo’ como facção (povo dividido pela busca de bens e poder). Visentin preservaria, pois, a diversidade e fluidez do uso da noção na obra, identificando através dela um espaço político polimórfico, marcado pelo surgimento de novas figuras de atores coletivos, ainda para além das quatro destacadas em seu texto.
Porém, para Ames, mais importante que a indicação desta plasticidade da noção, parece ser o rompimento de Visantin com a ideia de passividade do povo, que viria da tradição e se manteria, para o Príncipe e os Discorsi, em Suchowlanski. Sob um principado, segundo Visentin, a atividade popular se manifesta na pressão das expectativas do povo em relação ao Príncipe (a relação dialética do Príncipe com o imaginário popular). Nos Discorsi (nas repúblicas) a resistência popular à dominação dos grandes faria nascer as leggi ed ordini (“a lei nasce do, e não contra, o desejo do povo” – idem, p. 117 –, lembra Ames). Já nas Istorie, o povo buscaria ocupar um lugar na estrutura do poder político e econômico da cidade (buscaria comandar, partilhar o poder com os grandi).
Gostaria, no entanto, de me deter em um ponto desse comentário relativo às Istorie. No correr do texto, ao trazer suas próprias considerações sobre o papel do povo nessas Histórias Florentinas, de maneira sutil e gentil, Ames faz um “reparo” (idem, p. 113) à minha própria visão sobre a natureza da atuação popular nessa obra. Em primeiro lugar, ele diz, minha interpretação suporia que “Maquiavel lidou com a mesma ideia de povo no curso de toda a sua obra, ideia passível de ser resumida nesta frase: ‘… povo é o portador de universais políticos’” (idem, p. 113), enquanto ele mesmo – Ames – pensaria, como Visentin, ‘povo’ como um “conceito polimórfico” (idem, p. 114).
Aqui, sem dúvida, Ames tem razão e compreende bem minha visão da questão. Penso efetivamente que, não obstante a oscilação do vocabulário (popolo, plebe, plebei, universale) e das situações histórico-políticas em que esses termos são mobilizados no contexto da teoria maquiaveliana da divisão civil, da teoria da oposição de humores diversos de que nascem as instituições e leis republicanas (“todas as leis que se fazem em favor da liberdade [republicana] nascem da desunião destes humores” – Discorsi I, 4[2]), o polo popular\plebeu é aquele da afirmação de universais políticos. Em outros termos: conceitualmente, no interior da construção da teoria política maquiaveliana, o povo é mesmo, no meu entender, “o portador de universais políticos” e, assim, “o guardião da liberdade” republicana ou, mais precisamente, ele é o fundamento das formas políticas – não despóticas — de governo e ordem social (insisto aqui no plural, pensando nos principados políticos, também eles fundados na força da negação popular da opressão dos grandes, aí não desdobrada em leis, mas capitalizada por um Príncipe). Enfim, pode haver, e há, acredito, oscilações e inflexões no emprego e nas referências sociológicas e históricas dos termos popolo e plebe no decorrer da obra, mas não na construção conceitual da filosofia política maquiaveliana – se há uma, como estou convencido que há, e de grande coerência e consistência, ao menos no interior das chamadas ‘grandes obras’.
Mas, nessas mesmas considerações relativas ao “Papel do povo em História de Florença”, Ames sugere também, muito sutil e delicadamente — como sempre –, fazendo alusão a uma passagem de meus comentários sobre as Istorie (uma passagem que, segundo ele, seria “corajosa e instigante” – Birchal e Theobaldo, 2018, p. 113 — evitando evidentemente a expressão ‘temerária’), que me coloco no campo daqueles que expressam “uma visão crítica, negativa, do papel do povo e pessimismo em relação à superação das divisões desagregadoras da cidade” (idem, p.112). Enfim, põe-me do lado daqueles que, quanto às Istorie, veem grandes e povo retratados, ambos, como agentes de dominação (Cf. idem, p. 113).
Aqui, penso que Ames talvez não tenha razão. Creio que certamente não me compreendeu bem. Pois, o que busquei dizer nesses meus comentários das Istorie é que, no ‘tumulto dos Ciompi’, a plebe e o popolo minuto florentinos (como categorias sociológicas[3]), ao ocuparem o polo do desejo de liberdade, o polo político da negação da opressão dos grandes, e ao alcançarem os intentos de sua revolta (ao alcançarem a instituição de novas leis e direitos, inclusive de participação na administração da cidade), ao invés de simplesmente deixarem governar as leis instituídas (como deve ocorrer nas verdadeiras repúblicas), incorrem na ilusão de encarnarem o sujeito das leis, dos ‘universais políticos’, na ilusão de ser ‘o povo’, em sua determinação positiva. Colocam-se, assim, de maneira exorbitante, na posição de tutores das leis e do governo, ao invés de súditos das leis e das instituições de direito.
Porém, é preciso dizer que, no meu entender, seria também excessivo, e por demais simplista, dizer que a plebe e o popolo minuto florentinos passaram, então, a “querer como os grandes”, a querer dominar e defender seus interesses “de parte”. Pois, aqui, a ilusão é aquela de uma parte acreditar poder se colocar no lugar do todo – encarnar o universal –, algo a que os grandes nunca pretenderam. Estes querem, cada um, ‘defender o seu’; pivotam sempre sobre a particularidade de seus interesses. Ora, não é esse, certamente, o caso da ação da plebe nesse episódio da revolta dos Ciompi, mesmo quando ela quis “governar sozinha”. Mesmo na derrapagem desastrosa de seu desejo de liberdade, a plebe não deseja “como os grandes”; permanece ilusoriamente movida pelo humor da negação da opressão da sua opressão.
Nisso, Ames e eu seguramente estamos de acordo: o povo (em sentido político, não sociológico ou econômico) quer leis e continua sempre para Maquiavel o “guardião da liberdade”, isto é, o fiador dos direitos (universais políticos, sempre históricos) e das instituições republicanas. Enquanto povo, a plebe não é movida pelo desejo (particular ou faccioso) de amealhar bens ou de dominar; quer a segurança da proteção das leis (nas quais um ‘todos’, um universal, sempre se abriga), não para ‘viver cada um como bem entender’, como pretendia, para a pulsão popular, a psicologia social dos Antigos. Enfim, há ‘desejo popular’ para Maquiavel quando uma ‘parte’ é movida pelo desejo de não ser dominada pelos grandes, movida pelo desejo de gozar da proteção institucional das leis (ou mesmo da proteção – imaginária – de um Príncipe). No entanto, sobre esse registro político republicano, acredito que não basta dizer que “a lei é o resultado da ação de resistência que o povo oferece à pretensão de dominação dos grandes” (idem, p.116). É preciso mostrar ‘como e porque’ isto se dá, como e porque se passa da negação da opressão às instituições (históricas) republicanas e às leis positivas.
No seu livro “Conflito e Liberdade”, já pelo final do último capítulo, Ames parece concordar comigo sobre a exigência de colocar essa questão que assinalo, embora conteste minha resposta. Ele a lembra por duas vezes: “A questão – diz – é compreender esta condição do povo como ‘autor das leis’”[4], voltando a uma formulação semelhante na página seguinte. A expressão “autor das leis” é minha, mas a pergunta trazida por Ames não é estranha à sua compreensão do povo como ‘potência instituinte’ e à sua constatação de que o modo maquiaveliano de pensar a cidade como um espaço de conflito “institui o povo, de certo modo, como ‘sujeito legislativo’” (Idem, p.209). Esta última expressão, agora, é dele, que a constrói, certamente, a partir da minha afirmação, citada em seu texto, de que é possível ver no povo “o sujeito mesmo da invenção histórica de direitos” (idem, p.204). Assim, ao que tudo indica, a pergunta nos é comum, estando a divergência na resposta. Para Ames, se há uma ”função legislativa do povo” (idem, p. 210), ela adere à ação de resistência popular (“o povo cumpre essa função [legislativa] na medida mesma em que resiste à opressão dos grandes” – idem, p. 210, diz). Ela se dá, continua ele, “de forma negativa (pela resistência, pela oposição – barulho e gritaria) e não de forma positiva”, segundo eu mesmo sugeriria (cf. idem p. 209). “Ou seja – continua, logo adiante –, como e por que a condição do povo como ‘sujeito legislativo’ para Maquiavel implicaria em um papel que excederia à resistência popular ativa, ‘ao barulho e gritaria’, como diz o florentino nos Discursos?” (idem, p. 210 – grifos meus).
Preciso esclarecer que em momento algum me ocorreu afirmar que o humor popular deixaria de ser estritamente negativo, pura oposição à opressão, como compreendeu Ames: não há metamorfose do ‘desejo político popular’ em busca de interesses ou fins particulares próprios; enfim, não há ‘pura positividade’ do desejo popular. Insisto nisso no próprio texto mobilizado por Ames. Escrevi ali: “(…) consideramos imperativo assumir, desde o início, com Lefort, o caráter ‘puramente negativo’ desse desejo”[5] – que se mantém como puro desejo de liberdade. A questão que coloco não é a da positivação do humor popular; é uma outra, bem diversa: “como se produzem as leis [positivas] a partir do desejo [negativo] de liberdade (…) que define politicamente o povo” (idem, p. 239). Em outras palavras: como esta atividade popular, estritamente negativa, redunda em instituições e leis positivas, ou seja, produz repúblicas. Lefort, com razão, diz que Maquiavel não responde diretamente a essa questão. Ele quereria, antes, apenas indicar (e Ames também, com razão, volta por sua vez a insistir nisso) o fundamento popular das instituições políticas: “o caminho da obtenção das próprias leis – diz Lefort – não é diretamente tematizado” (idem, p. 239). Permanecemos no registro da afirmação do vínculo entre as leis e a liberdade, entre Lei e negação da opressão.
Aceito isso, eu mesmo tentei buscar no interior da teoria política maquiaveliana uma resposta que fosse consistente com ela para a nossa pergunta (a qual repito: ‘como e porque a atividade do humor popular, puramente negativo, produz as leis (históricas) republicanas?’) Não se trata, por certo, de atribuir ao povo uma atividade propriamente de inteligência e elaboração legislativa, nem muito menos de encontrar nele uma Vontade Geral de perfil rousseauniano, já que aqui o povo sequer é constituído pela massa dos integrantes da cidade ou pela totalidade dos implicados no corpo político. É preciso lembrar, como assinala, aliás, o próprio Ames, que “o povo nunca é concebido como totalidade; ele é sempre parte, embora seja movido por um humor universal (desejo de liberdade), por oposição ao humor dos grandes (desejo de poder), necessariamente particular” (Ames, 2017, p. 212). O que pretendi dizer, e que aqui quero reiterar, é simplesmente que, no meu entender, a negatividade do humor popular deve ser pensada sempre como uma negação determinada, dado que o polo negativo do conflito civil se opõe sempre a um polo particular positivo, às múltiplas afirmações particulares dos desejos, sempre determinados, dos grandes, que, assim, determinam a negação. Em outras palavras: a oposição grandes\povo ocorre entre um particular positivo e um universal negativo, o polo do humor popular. O desejo de liberdade não é um desejo abstrato; é negação determinada (histórica) da particularidade opressiva de desejos dos grandes, mostrando-se justamente por isso produtor de universais histórico-políticos (leggi ed ordini). A rigor, então, a questão é bastante simples: o desejo popular é sempre efetivamente pura negação (“não ser dominado e oprimido”); porém, negação/contradição: negação determinada pela oposição ao desejo positivo dos grandes, operando na história.
Enfim, amigo Ames, estou de acordo com praticamente todos os pontos que, a certa altura de seu livro, você enuncia como “os elementos do nosso [seu] argumento” (idem, p. 207). Minha tentativa é tão somente a de mostrar ‘como e porque as leggi ed ordini emergem diretamente do conflito’; como e porque o humor popular “se positiva” (se determina) nos ordenamentos institucionais (republicanos), justamente os pontos d) e e) do elenco de elementos do seu “argumento”(*).
Certamente continuaremos nosso diálogo, mas quero parabenizá-lo por seus produtivos estudos maquiavelianos, que tanto têm ajudado a nós todos a levar adiante nossas interrogações políticas.
(*)Transcrevo toda a passagem, para maior facilidade do leitor: ”Aparecem já aqui elementos centrais do nosso argumento. Para Maquiavel: a) as leggi ed ordini são o resultado do confronto entre povo e grandes; b) o conflito entre grandes e povo não é simples confrontação de interesses, mas oposição de projetos políticos (dominação versus não dominação); c) o confronto tem sempre em vista um resultado institucional, a criação de mecanismos legais de controle da desmesura , particularmente do desejo de opressão dos grandes; d) as leggi ed ordini emergem do (e não contra o) tumulto e, por isso, não se impõem externamente às partes em confronto; e) pelo fato de as leggi ed ordini resultantes do conflito terem por ’matéria’ a salvaguarda da liberdade, podemos dizer que, de certo modo, o humor popular “se positiva” nos ordenamentos institucionais; f) o que impede às leggi ed ordini “se cristalizarem” sob o aparato jurídico-político é a condição de exterioridade do povo como potência instituinte viva que, em virtude do caráter constitutivo da divisão, conserva a provisoriedade de todo o instituído; g) jamais há uma forma constitucional definitivamente instituída, um aparato jurídico-político definitivo com autoridade soberana, uma vez que a luta política, que se dá na esfera factual e pré-legal, conserva sua condição de potência instituidora do normativo/jurídico. A sequência do texto limita-se a uma tentativa de detalhar um pouco mais e melhor esses pontos”(in Conflito e Liberdade, p. 207).
[1][1] Birchal, Telma de Souza e Theobaldo, Maria Cristina (orgs), Espaços da Liberdade, Homenagem a Sérgio Cardoso. Cuiabá:EdUFMT, 2018.
[2] Maquiavel, Discursos sobre a Primeira Década de Tito Lívio, São Paulo: Martins Fontes,2007, p. 22.
[3] Desenvolvo essa questão em um dos capítulos do meu livro ”Maquiavelianas, lições de política republicana” (no prelo, Editora 34), no qual examino as passagens pertinentes do L III das Istorie.
[4] Ames, j. L., Conflito e liberdade, a vida política para Maquiavel, Curitiba: CVR, 2017, p. 210.
[5] [5] Cardoso, Sérgio, Em direção ao núcleo da ‘obra Maquiavel’: sobre a divisão civil e suas interpretações, São Paulo: Revista Discurso, 45/2, 2015. P. 242.